Poemas de Lisboa

POEMAS DE LISBOA


AREEIRO

A minha tristeza
não é igual
a nenhuma outra
que passeia por aqui
não há choques de azul
nem cachos de acácias
resta o Caetano a cantar
no rádio
autocarros vazios
onde não cabe mais ninguém
não há versos de Pessoa 
nas paredes
só os pombos, clientes
da Cinderela
me recordam que a felicidade existe
os aviões prometem levar-me 
para bem perto de mim
e ao mesmo tempo ameaçam
trazer-me de volta
este ano fui a Nova York
fui a Barcelona
mas esqueci-me de ficar.



NA MEXICANA

O aroma amargo da pomada
confunde-se com o aroma doce do meu café
as mãos conhecem de cor as curvas
os ângulos
nunca se enganam
a escova vai e vem e vem e vai
e o oirártnoc
no lustro um estalinho
do pano sai
o sapato brilha mais
confunde brilhos
atrai espelhos e luzes
as meias saem ilesas
sem raivas nem ódios
o chão fica mais leve
e eu com os meus ténis
de vidro
o empregado circula em linha reta
nunca vem
quando eu penso
os pássaros cantam para ninguém.


VASCO DA GAMA

Vasco da Gama, o próprio
não se lembrou de descobrir
o centro comercial
nem tectos de água
onde as gaivotas descobriram
mar calmo para a brincadeira

aqui descobre-se tudo
com toda a facilidade
pessoas perdidas em descobertas de desejos
pontos de encontro sem ninguém
as cores, os tons
os tores, as cons
vice-versas nos vice-versos do vice-rei
uma música eterna 
a morder o calcanhar das pessoas
das lojas, o enigma
decifrado a cada olhar
desatento
o rosto esculpido
pela noite, o centro
descobre-me
reinventando o amanhecer



VARANDAS DE LISBOA

Jantar à luz das luzes de Lisboa
à luz da vela
e música de piano antigo
o Tejo, um palco sem artistas
que só se adivinha
a cidade desfalece lentamente
como os carros na curva da praça
o elevador de Santa Justa
iluminado como a santa
(que lhe dá o nome)
a estátua na praça
cavalo e cavaleiro
é uma sombra de prata e luz
onde o cavalo parece ser o rei
tudo me seduz
da mesa ao chão
dos olhos ao coração
janelas em formação militar
prontas para a guerra do dia de amanhã
cansadas da mesma canseira
o piano calou-se e tudo permanece como é
só a minha alma sente a falta da dominante/tónica
os aromas da cidade estão lá fora à minha espera
temperados pelo vento
que os barcos do rio trazem com eles.



GALETO 1

O triunfo de uma saudade inexplicável
me obriga a voltar
busco o teu sorriso que me guia
até onde quero ficar
sem mais para fazer
invento apetites de comer
para saciar a fome
que meus olhos têm de te ver

GALETO 2

No momento em que escrevo
tu já partiste
o taipal que veda as obras
te engole
e a avenida deixou de dançar
ao ritmo do teu passo
amanhã o taipal que veda as obras
vai-te devolver
e eu não estarei cá para ver
mas o cheiro dos carros não perturba
teu perfume
nas avenidas do meu pensamento.


BAIXA

Sempre que vou à baixa
transformo-me em turista
olho para tudo o que conheço de cor
encanto-me com os encantamentos 
de muitos ontem
sou turista na minha rua
e ainda assim encontro novidades
romances
de montra de loja
fantasias
luminosidades
de contra-luz
desejos de monumento
desesperos de avenida
outonos de sol em férias
publicidades sem cansaço
os meus passos nunca são iguais
nos desenhos da calçada.



CHIADO

A mesa de Pessoa
não tem livros para ler
tem ecos de poesia
guardada nas estantes
sem chuva
a vibração das ruas
a estátua amplia
o Tejo afunda-se
ao fundo da cidade
turistas reciclados
nos versos de pedra e cal
sabem quem és
tiram-te fotos
tu, pensativo
pareces refletir
nos sorrisos que deixaste à solta
nas páginas nunca visitadas
por flaches.



AVENIDA

Desço a pé a avenida sem memória
na nova sombra das árvores
nem o sol se reconhece
as fachadas se agigantam para mim
com olhos de palácio pobre
folhas rolam pelo chão lentamente
em contra-mão
montras cansadas de esperar
refletem carros ansiosos
lá em baixo tem um rio delirante
que nunca desceu a avenida.



ESPLANADA

Sentada à minha frente
à espera do mundo
sem esperar ninguém
olhava; o Tejo de vidro sem espuma
nem toalhas de nuvens
o casco invertido da canoa
a escultura em ferro
numa ameaça inútil
as gaivotas desiguais
sem barcos para perseguir
exibindo a dança de ontem
eu bebia o meu café
para enganar as horas
sem dar atenção a nada

ESPLANADA 2

(a mesma esplanada um dia depois)

A cadeira esperava por mim
sem desespero
sentada à minha frente
outra mulher
a mesma paz
o Tejo de vidro não partiu
o casco invertido da canoa
navega na toalha de nuvens
a escultura em ferro
decidiu gostar de mm
as gaivotas ensaiam
a dança de amanhã
que é igual à de ontem
eu bebia o meu café
à espera que a noite
me encontrasse


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